Filiação socioafetiva & multiparentalidade

A importância do afeto nas relações familiares é uma realidade, sendo plenamente defendida atualmente pela nossa legislação.

Mas nem sempre foi assim.

Antigamente, a única forma de união reconhecida pela lei era aquela proveniente do casamento. A família, então, estaria formada, apenas, em decorrência do casamento de um homem e uma mulher.

Filhos, por sua vez, eram legítimos e reconhecidos como tais apenas aqueles que nasciam dessa união. Os nascidos fora do casamento convencional recebiam a classificação de adulterinos, não tendo, ainda, seus direitos protegidos. Eram marginalizados, taxados de forma vexatória, recaindo a desonra sobre eles pela falta cometida por seus pais.

Ainda bem que isso passou. Ainda bem que a sociedade mudou. Ainda bem que não é mais esse o entendimento que prevalece.

Com o tempo, com a evolução da sociedade e das suas necessidades, houve uma mudança de paradigma no que se refere a conceituação de família.

Com a Constituição Federal de 1988 essa conceituação foi ampliada, tendo sido reconhecidas outras formas para a sua origem e formação, como a informalidade, a viabilidade de uniões homoafetivas, uniões uniparentais, entre outras.

Mudanças também ocorreram com relação a conceituação de filiação.

As relações parentais, entre pais e filhos, passaram a ter um significado muito mais profundo do que apenas a verdade biológica, sendo que o nosso ordenamento jurídico tem voltado o seu olhar para isso.

O termo filiação designa a relação de parentesco em linha reta e em primeiro grau do filho com relação aos seus pais, falando-se em paternidade e em maternidade conforme nos concentramos na figura do pai ou da mãe.

Essa relação pode ser natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem. É o que dispõe o art. 1.593 do Código Civil, que ampliou as possibilidades de criação dos vínculos de parentesco não biológico antes restrita apenas à adoção, dando respaldo e reconhecimento também aos laços decorrentes do afeto, sendo nessa última modalidade que concentraremos esse nosso conteúdo.

A filiação sócio afetiva é aquela que não decorre do vínculo genético, mas sim do sentimento de imenso carinho, emoção e amor existente entre os filhos e aqueles que se posicionam como seus pais, acolhendo o ditado popular de que pais são aqueles que criam e não necessariamente os que procriam.

Está cada vez mais presente em nossa realidade, sendo que para a sua caracterização não basta apenas a moradia conjunta, mas também a existência de uma relação notável, reconhecida pela sociedade, entre os filhos e seus pais.

Na maior parte das vezes, essa afetividade nasce a partir de um relacionamento amoroso cultivado pelo pai ou pela mãe da criança, mas isso não é uma regra.

Ela pode sim ser exercida por um padrasto, por uma madrasta, mas não apenas por estes. Tios, avôs, padrinhos ou qualquer outra pessoa que se coloque e exerça as funções decorrentes da paternidade ou da maternidade poderão ser reconhecidos como pais sócioafetivos.

É possível ocorrer independentemente da relação dos filhos com seus pais biológicos, sendo possível a sua existência de forma paralela e concomitante sem qualquer problema ou competição, não podendo ainda, uma vez reconhecida, ser por ninguém questionada.

Assim, os filhos podem ter pais e mães biológicos participativos e ainda assim existir uma outra relação sócioafetiva com outra pessoa, surgindo assim a figura da multiparentalidade.

Decorrente de um fato social, a multiparentalidade pode ser então caracterizada como o parentesco constituído por múltiplos pais, configurando-se quando um filho estabelece uma relação de paternidade ou maternidade com mais de um pai e/ou mais de uma mãe.

Ela é comum também nas reproduções medicamente assistidas que contam com a participação de mais de duas pessoas no processo reprodutivo. A título exemplificativo isto é verificado, por exemplo, quando um material genético de um homem e de uma mulher é gestado no útero de uma outra mulher ou, ainda, no caso de dois homens ou duas mulheres que mantém uma relação homoafetiva e necessitam do material genético de uma terceira pessoa para viabilizar a procriação.

Nesses casos, todos poderiam manter vínculos com a criança, fazendo nascer a multiparentalidade ou pluriparentalidade, como também é chamada esse tipo de relação.

É acolhida de forma plena pelo nosso ordenamento jurídico que permite hoje a simultaneidade entre a filiação biológica e a socioafetiva, possibilitando aos filhos uma maior rede de afeto e proteção, além de produzir todos os efeitos jurídicos do parentesco.

E que efeitos jurídicos são esses?

Reconhecimento da multiparentalidade e da filiação sócioafetiva em condições de igualdade com a filiação biológica e adotiva, sem qualquer hierarquia entre elas.

Hoje, filho é filho, independente da origem da filiação conforme tese hoje predominante do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

Esse reconhecimento pode ser feito judicial ou extrajudicialmente, devendo nessa segunda hipótese serem observadas as imposições feitas pela legislação.

É ato irrevogável, passando a existir, a partir dele, a favor dos filhos reconhecidos, todos os direitos legais decorrentes da parentalidade, inclusive os sucessórios, existindo a possibilidade de ser averbado o nome de família dos pais sócioafetivos nos respectivos registros de nascimento.

Podemos finalizar concluindo que os novos arranjos familiares, realidade hoje em nossa sociedade, prestigiam a afetividade em detrimento do critério puramente biológico.

O sistema jurídico de proteção integral das crianças e dos adolescentes previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente enfatizam e defendem a inovação, reconhecendo direitos e obrigações inerentes às relações consolidadas pelo tempo, sempre na defesa das crianças e dos adolescentes, considerados como pessoas em desenvolvimento.

BIBLIOGRAFIA:

-PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões -Ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 333

- BARBOSA E SILVA, Erica — Reconhecimento de Paternidade Sócio Afetiva ni Cartório de Registro Civil: Mudanças Significativas, Revista IBDFAM — Famílias e Sucessões.

- IBDFAM, Famílias e Sucessões — Polêmicas, tendências e inovações, p. 205 e ss., BH, 2018.

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Beto Mancusi1 Comment