Poliamor

Amar e ser amado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Essa é a essência das relações poliafetivas.

Presente na nossa sociedade contemporânea, esse assunto se mostra extremamente polêmico.

Apesar de a Constituição Federal de 1988 ter ampliado o conceito de família, essa forma de amar ainda não é capaz de formar entidades familiares regularmente reconhecidas pela nossa legislação.

Difícil é entender o por quê.

Viemos de uma realidade extremamente engessada.

Pai, mãe e filhos eram sempre os protagonistas das relações familiares, que se caracterizavam como patriarcais, patrimonialistas e conservadoras.

A monogamia, estabelecida como princípio, fazia imperar a lealdade e a fidelidade entre os cônjuges, em conformidade com os mandamentos de uma religião que buscava garantir a transmissão de bens a herdeiros de um patriarca.

Assim, filhos eram legítimos e assim considerados apenas aqueles havidos na constância do casamento. Frutos de relações adulterinas não podiam ser reconhecidos, ficando, consequentemente, sem seus direitos protegidos.

O casamento por sua vez, era indissolúvel.

Impossível se pensar, então, no fim das sociedades conjugais.

Mas esse cenário não demorou para ser alterado.

Diante da evolução da sociedade, os interesses foram se modificando, tornando necessária a adequação de uma legislação que se mostrava ultrapassada.

Com as mulheres assumindo um novo papel dentro das entidades familiares, passando a ter direitos e responsabilidades equiparados ao de seus companheiros, acabaram conquistando sua independência financeira, tirando do casamento o viés exclusivamente patrimonialista.

O divórcio, incorporado na nossa realidade, se mostra hoje cada vez mais facilitado, permitindo a sucessão dos casamentos quantas vezes for necessário.

E, enaltecendo o afeto e a busca pela constante felicidade, veio a Constituição Federal de 1988 ampliar os horizontes do conceito de família, trazendo cada vez mais diversidade para a sua formação.

Passa ela a ser considerada como a base da sociedade, sendo instituído o conceito das entidades familiares, formadas não só pelo casamento tradicional, mas também através do exercício de uma autonomia privada que autoriza indivíduos a regulamentarem seus próprios interesses, sendo eles patrimoniais ou não.

Novos valores, novos princípios e novas regras dominam a cena do nosso dia a dia.

Mas parece que tudo isso não se mostra suficiente para dar conta das necessidades cada vez mais diversas de nós, seres humanos.

Após reconhecer a socioafetivadade como capaz de criar laços familiares, reconhecer a união estável como entidade familiar e tornar legítima a união entre pessoas do mesmo sexo, entre tantos outros avanços da nossa legislação, uma nova modalidade de se viver vem tirando o sono daqueles que pensam o direito.

Fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, na liberdade que representa o bem mais protegido pela nossa Constituição e resgatando uma prática até então adormecida por uma Igreja impositiva, o poliamor faz surgir uma nova forma de se relacionar.

Considerado como uma relação interpessoal, se apresenta como um modo de vida, revelando a perspectiva saudável de se estar envolvido com múltiplos parceiros, de forma responsável, com intimidade profunda e possivelmente duradoura.

Oficialmente caracterizado como um tipo de relação ou atração afetiva em que cada pessoa tem a liberdade de manter vários relacionamentos simultaneamente, nega a monogamia como modelo de fidelidade sem, no entanto, promover a promiscuidade.

Juridicamente, por sua vez, representa uma teoria psicológica que começa a se descortinar para o direito, admitindo a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações de afetividade paralelas em que seus participantes se conhecem e se aceitam mutuamente em uma relação múltipla e aberta[1].

Todas as relações são íntimas, profundas, contínuas e duradouras, com o mesmo nível de importância, existindo, ainda, o objetivo de constituição de família entre todos os seus membros que dão total publicidade aos seus relacionamentos.[2]

Diante dessa rápida conceituação, podemos concluir como elementos indispensáveis para a comprovação da comunhão de vida e do comprometimento recíproco entre os participantes do poliamorismo a boa fé objetiva, a afetividade, a coexistência, a estabilidade e a plena ostentabilidade[3].

Mas o que fazer diante desse novo cenário? O que fazer para regulamentar a vida daqueles que andam à frente da nossa legislação?

Negar seus direitos não é a solução.

Alegar que estamos diante de bigamia ou de concubinato, também não.

Quando falamos em poliamor não temos a desonestidade entre seus participantes.

Temos transparência, temos aceitação.

Temos família, sendo essa a grande questão.

Justa então a decisão do Conselho Nacional de Justiça que negou a possibilidade de serem lavradas escrituras públicas declarando a existência e buscando a formalização de relações poliafetivas enquanto elas não são reconhecidas como entidades familiares pela nossa legislação 

Eu acredito que não.

Diminuir cada vez mais a interferência do Estado nas relações familiares é o que defende a nossa Constituição, desde que não se afronte direitos ou se cause prejuízo a terceiros.

Liberdade e a igualdade foram de fato reconhecidas como direitos fundamentais.

Norteados pela dignidade e pela autonomia da vontade que se apresentam como princípios fundamentais, autorizam todo ser humano a decidir os rumos de suas próprias vidas.

Assim, quando indivíduos, no exercício da manifestação das suas vontades individuais escolhem manter relacionamentos simultâneos, com responsabilidade, boa-fé, ciência e concordância de todos os envolvidos, fazer prevalecer a monogamia como princípio estruturante do direito das famílias e não como norma de conduta social que pode ser seguida ou não, não se mostra justo, nem tampouco aceitável.

Não podemos fechar os olhos para a existência de famílias simultâneas. Não podemos fechar os olhos para as relações poliafetivas. Elas são realidade na nossa atual conjuntura social.

Não havendo impedimentos legais, é necessário o seu reconhecimento.

Responsabilidades, direitos, deveres devem ser estabelecidos a fim de se minimizar uma insegurança jurídica e a marginalização daqueles que querem fugir do modelo tradicional, constituindo suas famílias com base na poliafetividade, prática real, não atual, que vem sendo negada de forma equivocada como afronta a um modelo de moral e bons costumes que já não existe mais.

Essa é hoje a minha opinião desconsiderando, porém, qualquer outra realidade que já deve estar sendo costurada enquanto componho esse texto, por uma sociedade inquieta que busca de forma constante pela definição do que é a tão sonhada felicidade.

 

Beto Mancusi


[1] FILHO, Rodolfo Pamplona; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, volume 6: Direito de Família - as famílias em perspectiva constitucional. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.

[2] LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito do amor e sexo: novas tendências. ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: BestSeller, 2007, p. 327.

[3] MOITINHO, Rodrigo; LORENZO, Deivid Carvalho. Poliamorismo e o reconhecimento das relações poliafetivas como núcleo familiar.jus.com.br, 2018

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Beto Mancusi